E quando acordo, amor, jaz um vão do meu lado e nesse vão, um rastro e no rastro um signo, tudo sobre o resto espaçoso de cama do meu lado, espaço vão, conforto inútil, nesse instante mais me valeria um catre, tão escasso e impassível esse meu amontoado pouco de carne; ergo-me sonolento, com algum pesar, pesar que vai se esvaindo um pouco a cada novo pouco passo até o instante em que finda o derradeiro resquício de sono do corpo, nesse momento algum amargor quente, pelante de café forte tragado com certa imprudência de primeira vez já se faz notar, queimando meu peito depois de deixar um calor intenso na garganta depois de magoar com a mais pura ardência a minha língua que pouco atesta o fato de em mim haver um cérebro que vive alguma vida – essas vidas digressivas dos cérebros, querida –, porém, esse cheiro de café queimando, e que sempre foi o melhor do que de café há, de repente faz pouco sentido e tateio, tateio como se voltasse às primevas infâncias, tentando colocar algum sentido nas coisas e quando desiludido volto a mim, esses meus pés já ganharam a rua e na rua eu poderia dizer que cercado estou por um mundo, por um cotidiano em que reinam as probabilidades e todas as coisas prováveis que tomam seu lugar a todo instante no seio das coisas, e, nas coisas, entendo sociedades, famílias, casas ou um qualquer coração solitário; morro muitas vezes nos meus até aqui – entenda em nome de todos os deuses que meu espírito errante já assassinou – muitos dias, minha pequena, várias são as vezes em que meu pescoço se parte, num tropeço, num deslize, numa queda composta tal qual fruta madura de pé de árvore, lá meu pescoço quebrado; automóveis que passam distantes, distantes, lentos, lentos num rompante se me desvelam amassando meus ossos tão carentes, ali, a um passo a minha frente; aviões que concentram tudo quanto há de hermético em se resolver pousar na minha parca coluna pousam na minha parca coluna; num repente estou morto, amor, e, nessa minha solidão de quem não conta um amigo tenho os restos defuntos descobertos pelos odores os mais sepulcrais que desprendem-se do meu pós-corpo e viajam uma viagem de átomos nus, imperceptíveis senão pelos cheiros verdes, cheiros de morto, cheiro morto, que encontram seu lugar ao sol nas narinas dos passantes; mas tudo devaneios, querida; corro os dias invisível em mortes de certa forma tão intermitentes, tão em momentos suspensos como o mundo de tabaco, de nicotina – pra denominar de formas diferentes o mesmo veneno – em que mergulho todas as manhãs, que talvez minha própria Morte personificada já se movimente perdida num desses corredores em que me desfaço, erguendo minhas inúmeras cabeças sobre os inumeráveis pedaços de pescoço partido a procura daqueles olhos que provavelmente a fitariam com um brilho que só a ela é conferido, Digressões! Digressões!, digressões – o fato é que volto, como que no impasse da fantástica Estrela eu volto, seguindo-a, fazendo todo esse maldito, desventurado, mal-quisto, infeliz, desditoso, desgraçado, anatemático, infausto e até dantesco caminho contrário, por esse caminho inglório em que nem a maior brecha permite o mais frouxo olhar de Fortuna eu volto, amor, com, ainda, as colunetas de fumo me deixando as narinas e uma preguiça nos pulmões, com, ainda, um cheiro de álcool no corpo, entrando no quarto escuro como uma alcova, sento no meu lado da cama, liso, arrumado, um signo falando de um signo que este signo apagou, meus olhos se acostumam a escuridão e então, vejo tuas formas preenchendo os sinais que elas deixam pela manhã, tu, inteira e sublimemente adormecida, não dizes uma palavra, não me faz um gesto, pouco se move e não diz que me ama, mas é neste momento, tão concreto em estranha solidez que me deito do teu lado, sinto aquela sonolência quase angelical voltando aos olhos e aos membros, um torpor irremediável de tão bom, de estar de novo do teu lado que sou tomado mais uma vez, dessa a vez derradeira, pelo pensamento de morte: é que aqui, amor, nesta noite, eu sei que não vou morrer.
"Sou, em grande parte, a mesma prosa que escrevo. [...] Tornei-me uma figura de livro, uma vida lida. O que sinto é (sem que eu queira) sentido para se escrever que se sentiu. O que penso está logo em palavras, misturado com imagens que o desfazem, aberto em ritmos que são outra coisa qualquer. De tanto recompor-me destruí-me. De tanto pensar-me, sou já meus pensamentos mas não eu. Sondei-me e deixei cair a sonda; vivo a pensar se sou fundo ou não, sem outra sonda agora senão o olhar que me mostra, claro a negro no espelho do poço alto, meu próprio rosto que me contempla contemplá-lo." - O Livro do Desassossego, FERNANDO PESSOA
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2 comentários:
Sinto falta de tuas linhas. Fazes muita falta, Poeta... Trazes mais de ti, beijo
Ah...que delicia! que viagem ler-te e que saudade eu estava...
Obrigada poeta por dividir conosco teus pensamentos, é bom demais.
Beijão.
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