terça-feira, 11 de setembro de 2012

A peste



A peste
(entendimento latino-americano)


"O mundo, para mim, é o mundo, apenas:
um palco em que representamos,
todos nós, um papel, sendo o meu triste."
- W. SHAKESPEARE in "O mercador de Veneza", Ato I, Cena I


Feito a grande puta, batia o ponto e voltava para casa no fim da tarde, caía na cama e diria-se que todas as cortinas do mundo, cerradas pela sua mão de uma passada, abaixo e acima desse seu peso, contribuíam: era o fim do espetáculo, e repetia como num mantra - sabia o que era um mantra: é o fim do espetáculo, é o fim do espetáculo, é o fim do espetáculo erofindospetáculo... ...pois era um espetáculo aquilo, e um daqueles inesperáveis, intoleráveis, ali, no centro do mundo, no imenso palco mundano, a platéia cheia, o palco entupido de atores, e coisas, e roupas, e caracterizações e esboços de sentimentos total e - pra fixar, se é que algo ali pudesse se tornar mais fixo - inteiramente parados, fixos!, "inertes", ela pensava muito sem querer; nada acontecia; voltando do trabalho ela dormia, o despertador tocava e como a atriz da trágica peça que não terminava nunca, ela tinha de voltar à cena, era sua hora, ao papel da grande frustradíssima santa. Levantava, num outro dia com alguma energia nos braços, e, quando pensava isso seus lábios desgovernados, sua língua perdida e incalma, sua cabeça que não sabia de onde tirava essas coisas soltavam complementares: "E, no entanto, meus braços não me pertencem" e assim começava o dia, com essa frase que, sendo só uma frase não sentia a necessidade de vasculhar a memória pra saber quando começou a dizê-la assim tão apocalípticamente, não percebia que entregava a sua vida à selvageria dos dias citando um dos poetas de verdade que seu país teve um dia, um dos poetas que a enxergavam, um seu igual, e não percebia a poesia naquilo; sua vida era trabalhar e dormir para trabalhar - pouco depois do ponto da saída nada havia.

Não era de dançar, nem por aí nem dentro da casa sempre fechada que alugava pra dormir, não era de passar noite em claro, nem cantar cantava, não tinha tempo pra música, mas conservava - na face, no jeito de dirigir o olhar, de carregar a bolsa na mão, nos ombros derretidos e até - e apesar - no jeito elegante de caminhar fabricado por saltos altos, finos, agudos que conferiam uma onda ao quadril - uma expressão de mulher sambada. Diriam transeuntes, colegas de trajeto, ou um pedestre que a via no ônibus que passava, um de seus vizinhos varejistas, o caixa da lotérica em que fazia o depósito de seu aluguel, diria que era bonita, não fosse tão difícil: era uma dessas pessoas difíceis de olhar e entender a beleza, feito uma ideia da Ilustração, um quadro do Renascimento, ou de épocas e estilos em que a beleza da obra se constrói mais por quem olha do que por quem pinta, logo era preciso empreendimento, disposição por parte do expectador; ela tinha aqueles olhos de vidraça embaçada, tinha uns traços quebrados na cara, sofria do grande cansaço dava para ver; sua beleza pedia tempo e sacrifício do observador para se mostrar, era preciso interpretá-la, encontrar as conexões de seus traços e conectá-los, quebrar a moldura, aquela mulher era um desses difíceis poemas modernos somado às impossíveis composições poéticas de Heráclito de Éfeso, o Obscuro - e apesar disso sua profissão exigia beleza & graça.

Livros tentara ler alguns no ônibus a caminho do trabalho (no trajeto contrário era impossível...), certa vez encontrou no meio de umas tantas coisas perdidas um livro de contos provavelmente esquecido por um de seus breves namoros, pensou que fosse só um livrinho desses que qualquer garota pode ler, mas aquele era difícil, Morangos mofados de Caio F. não lhe fazia o menor sentido, desistiu, aquele tal Caio, aquele veado, falava umas coisas que por natureza ela não conseguia entender (fosse o oposto...) como quando em determinada história que tinha lá, determinado conto, um personagem e outro vinha sentindo assim que apesar do constante movimento próprio e do mundo, algo dentro deles continuava para sempre parado, adormecido, em torpor e aquilo soava a ela como se dito num dialeto indominável, que usa de antonímias para representar as coisas, pois que ela sentia exatamente o contrário, a vida era exatamente o oposto: tirava os olhos do livro e voltava ao ônibus, sentada imóvel ali no seu assento, pessoas em pé, escoradas, lá fora a cidade com suas árvores e edifícios e pontes e cachorros e cores como um borrão intermitente que aparece e some e reaparece um pouco mais atrás, sem movimento, fixidades - um desses retratos urbanos - e se fechava os olhos sentia uma luz muito ondulante no vácuo pouco dentro de suas pálpebras, uma luz que tremeluzia ali jogada de um lugar mais fundo dentro de si: apesar da inanição do mundo parecia sempre que uma biblioteca queimava dentro dela jogando luz e sombra no forro cavernoso de dentro do seu corpo, parecia sempre que um terremoto balançava a terra que corria dentro dela como se as muralhas de Tróia estivessem há milênios tombando, daí depois que abria os olhos sem perceber, sobressaltava-se pensando que ia queimar alguém, mas fora havia o mundo, havia o sol, havia a vida incessantemente cessada. Fria. Deixou o livro no banco do ônibus.

Não era muito inteligente, mas era vivida o que contribuiu para deixar muito intelectual no chinelo, mesmo que se mantivesse quase sempre só consigo mesma e quando ouvia algo que lhe desagradava passava a desfiar seus argumentos contrários para dentro de si, muda, introspectiva. Usava expressões frasais que, nunca ninguém lhe contando nunca viria a saber que citava grandes e renomados malditos: poetas, filósofos, dramaturgos, comunistas, santos, meretrizes de luxo e fazia assim sem saber e por não saber sem pretensões - não tinha pretensões, nunca teve -, com naturalidade, o que lhe "rendeu" mais de um amante entre aqueles  mesmos intelectuais (mas isso faz tempo, antes, quando do amor, antes de seus seios esfriarem e amolecerem para todo o sempre, quando aquele fogo de dentro ainda podia ser controlado, e modificado, direcionado até, quando seu corpo ainda entendia o comércio dos homens) que não duraram muito afinal. Trabalhava numa das mais bem sucedidas obras da arquitetura de sua cidade ("da América Latina!", diziam), ora, mas que contradição, acontece que, bem ali, à margem dessa pomposa construção, alguns - poucos - quarteirões do trabalho tinha de atravessar uma terrível (terrível não, triste) e asquerosa favela, daquelas tradicionais, casas de palafita, lama, verdes-musgos, fome, vício, cabelos desgrenhados, por sobre peitos esqueléticos as barrigas crescidas por todos os motivos da América Latina; todas essas coisas misturadas, criando um bolo, fermento incontido e ela, ela só olhava, aquela favela construída com crianças feias nos braços de outras crianças devassadas na calçada; passava no ônibus, olhava e acontecia o efeito retrato, em sépia, dessa gente que já morreu. A passada não durava mais que alguns segundos e era tempo dela adivinhar, nuvem invisível de átomos espalhados pelo ar, descolados do corpo daqueles meninos e meninas: o cheiro de sexo misturado com as dores da pedra. Sentia aquele barulho dentro de si e sem saber que palavras pensar apenas se mexia no banco, se empertigava um pouco enquanto abria espaço no meio do fogo de dentro para aquela compreensão muda que crescia dentro dela, uma compreensão desprovida de palavras. No trabalho, ouvisse comentários sobre questões semelhantes, não comentava os comentários, dizia simplesmente daquele mesmo jeito de antes: "A vida como ela é" sem olhar as colegas nos olhos, sem ouvir as senhoras que passavam comentando as vitrines, indefinível o que ela olhava ou via, o que se passava dentro daquele basculante embaçado, abandonado que eram as suas retinas, ali, estática, quase confundida entre os manequins sem cabeça, como prescreve a nova moda.

Segunda-feira, o único dia em que o despertador desperta só para cumprir com o ritual da semana, como um objeto que não pode deixar de voltar à cena da filmagem quando se tem de voltar à filmagem, à cena, depois das irrefreáveis dolorosas pausas: ela já estava acordada - dormiu o domingo inteiro -, mas sentia-se estranha, quando o aparelho tocou, embora já se encontrasse sentada na beira da cama fora arrancada violentamente de uma espécie de torpor, de um limiar, sentiu um vento fraco que não podia ter vindo de lugar nenhum, como se algo grande passasse muito perto, abanando, olhou para trás, depois prum lado e pro outro mas se algo havia a música do rádio-relógio levou embora. Naquele dia ela chegou cedo nas imediações do trabalho, desceu pelos lados da favela e andou um pouco; estava pensativa; seus olhos que geralmente passavam esfregando as coisas da vida nesse começo de dia nada refletiam, estava inquieta, não era de inquietar-se assim, príncipes troianos caiam, papiros queimavam no que ela caminhava e ela suplicava por alguma ordem e no que pensou assim, "ordem", aconteceu: acostumada com esses príncipes para sempre caindo, os rolos e rolos de palimpsestos inflamando eternamente, espantou-se quando perto da entrada do trabalho sentiu como que um corpo alcançando o chão - os corpos nunca o alcançavam, o fogo nunca cessava - passou os olhos e não encontrou nada, sentiu uma sombra, um sopro outra vez, aquela brisa, mas quando voltou parte do corpo e procurou só encontrou o sol ali, suspenso e maiúsculo, quente, ele era a negação de tudo o que sentira no repositório daquele instante. Encarou o dia lá fora alguns segundos e entrou tentando abandonar aquelas metáforas absurdas, outro achado, desta vez herança inconveniente deixada por um quase namorado estudante de História.

Era cedo, caminhava ali dentro, devagar, olhando o chão lustroso tendo sido limpo pelos meninos na madrugada, ia de uma galeria a outra, dobrando esquinas brilhantes, passando pelas intermináveis vitrines, começou a olhar sem que as coisas que via passassem a furtar-lhe os pensamentos, sentia aquele algo se aproximando, mas não podia saber o que era, não podia alcançar, nem medir, não compreendia, as vitrines ficavam para trás e não sumiam de sua frente, era um labirinto refletivo aquele lugar, os azulejos negros em nada ficavam a dever àqueles cristais, parada entre uma parede de pedras negras perfeitamente polida e um  imenso espelho que pendia suspenso por fios de náilon, entre vários manequins sentiu uma espécia de vestígio, os minutos corriam e era quase hora de entrar, na pedra preta perfeitamente polida podia ver os reflexos adentrando-se um ao outro, o espelho detrás dela balançava, conferindo movimentos falsos aos manequins - alguns com cabeça - frívola e perfeitamente bem vestidos, num repente, numa viagem a minutos irremediavelmente próximos sua mente se abriu com a porta central deixando ganhar os corredores toda a futilidade do mundo carregadas naqueles milhares de passos, aquelas pessoas, numa segunda-feira de manhã, ali, de novo, e todos os dias, sentiu um peso tremendo, e, como se se encontrasse a milhares de metros dentro do oceano sentiu uma pressão insuportável lhe empurrar para fora da presença daqueles que aguardavam lá fora, para a superfície. Abriu os olhos, foi rápido, ainda estava diante da parede preta, a pressão sumira, tudo que restara era um balouço fino de vaga marinha e o desejo que até isso se fosse, olhou aquele paredão ali muito perto, flutuante, é ébano?, o que vem lá dentro?, que coisa é?, pensou, rezou em silêncio e, contradizendo os dias, as horas, o comércio das mãos, naquele dia ela quis entender que mortíferas abstrações tomavam o seu espírito e depois de um esforço excruciante entendeu daquele mesmo jeito sem palavras, respirando uma coisa mais fundo e soltando o ar e se soltando à vaga; daquele nada uma imagem, uma lembrança antiga brotou como um soco no meio dos seus seios mortos, o historiador, o das metáforas falava lá daqueles dias afogados pela memória tão pouco requisitada dela "Veio numa embarcação genovesa" e naquele mesmo instante ela terminou de afogar a lembrança com água e sal verbalizando o inverbalizável: "Saída da Crimeia...". Ela andou alguns passos, as portas correram para o lado, opostas, saiu, enfiando a mão no bolso traseiro da calça, puxou um maço amassado de cigarros, levou até os lábios com os quais puxou um deles pelo filtro amarelo, com a outra mão apertou o botão do isqueiro, queimou a ponta do cigarro e começou a chorar convulsiva.

Aquele dia não trabalhou, refez o caminho, voltou para casa, repetiu o mantra e dormiu.
No outro dia chegou na hora, não olhou as vitrines, trabalhou muito porque - compreendeu, deste vez com palavras, que era esse o jeito acertado - graças a Deus Marx estava certo: o trabalho aliena o homem. E aquilo era bom.


A. do Carvalho...
...em 11 de setembro de 2012

terça-feira, 10 de abril de 2012

À não-morte...


E quando acordo, amor, jaz um vão do meu lado e nesse vão, um rastro e no rastro um signo, tudo sobre o resto espaçoso de cama do meu lado, espaço vão, conforto inútil, nesse instante mais me valeria um catre, tão escasso e impassível esse meu amontoado pouco de carne; ergo-me sonolento, com algum pesar, pesar que vai se esvaindo um pouco a cada novo pouco passo até o instante em que finda o derradeiro resquício de sono do corpo, nesse momento algum amargor quente, pelante de café forte tragado com certa imprudência de primeira vez já se faz notar, queimando meu peito depois de deixar um calor intenso na garganta depois de magoar com a mais pura ardência a minha língua que pouco atesta o fato de em mim haver um cérebro que vive alguma vida – essas vidas digressivas dos cérebros, querida –, porém, esse cheiro de café queimando, e que sempre foi o melhor do que de café há, de repente faz pouco sentido e tateio, tateio como se voltasse às primevas infâncias, tentando colocar algum sentido nas coisas e quando desiludido volto a mim, esses meus pés já ganharam a rua e na rua eu poderia dizer que cercado estou por um mundo, por um cotidiano em que reinam as probabilidades e todas as coisas prováveis que tomam seu lugar a todo instante no seio das coisas, e, nas coisas, entendo sociedades, famílias, casas ou um qualquer coração solitário; morro muitas vezes nos meus até aqui – entenda em nome de todos os deuses que meu espírito errante já assassinou – muitos dias, minha pequena, várias são as vezes em que meu pescoço se parte, num tropeço, num deslize, numa queda composta tal qual fruta madura de pé de árvore, lá meu pescoço quebrado; automóveis que passam distantes, distantes, lentos, lentos num rompante se me desvelam amassando meus ossos tão carentes, ali, a um passo a minha frente; aviões que concentram tudo quanto há de hermético em se resolver pousar na minha parca coluna pousam na minha parca coluna; num repente estou morto, amor, e, nessa minha solidão de quem não conta um amigo tenho os restos defuntos descobertos pelos odores os mais sepulcrais que desprendem-se do meu pós-corpo e viajam uma viagem de átomos nus, imperceptíveis senão pelos cheiros verdes, cheiros de morto, cheiro morto, que encontram seu lugar ao sol nas narinas dos passantes; mas tudo devaneios, querida; corro os dias invisível em mortes de certa forma tão intermitentes, tão em momentos suspensos como o mundo de tabaco, de nicotina – pra denominar de formas diferentes o mesmo veneno – em que mergulho todas as manhãs, que talvez minha própria Morte personificada já se movimente perdida num desses corredores em que me desfaço, erguendo minhas inúmeras cabeças sobre os inumeráveis pedaços de pescoço partido a procura daqueles olhos que provavelmente a fitariam com um brilho que só a ela é conferido, Digressões! Digressões!, digressões – o fato é que volto, como que no impasse da fantástica Estrela eu volto, seguindo-a, fazendo todo esse maldito, desventurado, mal-quisto, infeliz, desditoso, desgraçado, anatemático, infausto e até dantesco caminho contrário, por esse caminho inglório em que nem a maior brecha permite o mais frouxo olhar de Fortuna eu volto, amor, com, ainda, as colunetas de fumo me deixando as narinas e uma preguiça nos pulmões, com, ainda, um cheiro de álcool no corpo, entrando no quarto escuro como uma alcova, sento no meu lado da cama, liso, arrumado, um signo falando de um signo que este signo apagou, meus olhos se acostumam a escuridão e então, vejo tuas formas preenchendo os sinais que elas deixam pela manhã, tu, inteira e sublimemente adormecida, não dizes uma palavra, não me faz um gesto, pouco se move e não diz que me ama, mas é neste momento, tão concreto em estranha solidez que me deito do teu lado, sinto aquela sonolência quase angelical voltando aos olhos e aos membros, um torpor irremediável de tão bom, de estar de novo do teu lado que sou tomado mais uma vez, dessa a vez derradeira, pelo pensamento de morte: é que aqui, amor, nesta noite, eu sei que não vou morrer.


A. do Carvalho...
...em 01 de abril, 2012

sexta-feira, 30 de março de 2012


Impressionante a semelhança entre Zuzu Angel – estilista brasileira, figura de nosso passado recente que desencadeou uma verdadeira guerra contra a ditadura militar – e Antígona – personagem da tragédia grega de mesmo nome do dramaturgo grego Sófocles –, mulheres sem partidários que abalaram a sociedade de sua época ao se erguer contra a injustiça, contra seu ditador, e a favor de tudo quanto seu espírito apontava como justo. Zuzu Angel que ergueu a voz, matriarcal, ao gutural quando isso por si só naquela época ditatorial já era uma forma de selar o próprio suicídio, Antígona, mulher fraternal, filha de Édipo, que chorou, enterrou e honrou com exéquias a quem fora proibido a proteção de uma tumba, num momento em que nenhum homem ousou pisar nas leis do déspota, numa época muito anterior a de Aristóteles que as considerava – as mulheres – seres inquestionavelmente (e é questionável esse inquestionável) inferiores. Zuzu foi assassinada, Antígona não encontrou outra saída senão o suicídio e o único objetivo de ambas era: enterrar aquele que lhes era caro.
Segue minha homenagem às mulheres, não só a todos esses espíritos guerreiros de diferentes épocas trazidos a tona pela grandiosidade de mentes artísticas ou cravadas na realidade da História, mas a todas que simplesmente são no mundo, à sua natureza (superior, certo está) feminil e a tudo que há de sacro em vocês. Não duvidem nem por um momento que, apesar do dia, que é de vocês, a felicidade é toda nossa.
Belo (o) dia da mulher.
Segue “Angélica”, por Chico Buarque de Holanda

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

O mouro...

É, e tão extensos foram os dias,
tão longas e furadas as horas – as passadas e as que ainda se arrastam – no mar,
que conserva no movimento, no trajeto, no percurso do corpo um incerto tom de
vaga, um impreciso balouço, somente o preciso para a não extinção total do
corpo que é, somente o suficiente para a infausta fragmentação parcial da
estrela perdida que vem sendo e vai sendo, singrando a procura do aberto das
coisas; é, e no seu avesso, onde se detém, sem que o saiba, o seu íntimo,
correm os corpos, correm as fontes, os cantos das sereias como promessas de uma
Shangrí-la em que no final só restará a ilusão da fuga, correm roedores, correm
ratos de todos os tamanhos a outra ponta da nau onde talvez e só talvez
encontrar um cantinho seco por alguns minutos e que sejam esses minutos
comaquelas extensas – ainda que torturantes – horas sem fundo; e, abarcando
esse desespero de ratos, essa fuga, esse tatear cego, as ondas gigantes, essa
hidra, essa sila e bestas mitológicas todas que se puder imaginar, esses irmãos
que não servem mais e que atiram ao mar, esse mar, os rios mais caudalosos que
chegam a ele, o fremir dos corpos que caem estrebuchando transpassados por fio
de espada, as velas que sobem pra descer, as ondas que descem num impulso de
jogar outras mais altas vai toda a embarcação levando o inferno por sobre as
ondas com seus diabos e capatazes em perfeita harmonia, o primeiro empunhando chicotes,
o segundo tridentes; é, é então quando toca em si feito uma dessas ondas
gigantes, ou um raio atravessando um ribombar de trovão atravessando um céu
atravessando um vendaval que lhe toca um choque depois de transpassar sua
compreensão que aqui é quando se toca o destino, quando todo destino morreu e
se segue enredado nesse inescapável sem outro voo possível e a morte, bem viva,
vai singrando, em tom lento de vaga na cabeça anestesiada e toda a peleja lhe
parece uma abstração antiga, antiga... toca então pesado a água aquele corpo leproso
com suas chagas purulentas abertas que outrora fora atirado ao mar, quandentão
esse guerreiro descobre seu espólio no que caem as pálpebras, os músculos
esmorecem e mal sente na galé nova frincha sendo aberta em suas costas... ah!, seu
espólio?, ser mouro na vida.


A. do Carvalho...
...em 29 de dezembro de 2011


(Storm, ou Tempestade)
para Ricardo Bernardini


Ascendendo... (ao chão)


Ora, deixa tua bagagem, desvencilha-te e corre, rasga essas asas das tuas costas e voa, mas vai pelo chão de terra firme, mantém tuas pernas secas de modo a ganhar velocidade, logo, atingirás tal grau de abstração ao ponto do sol se tornar azul, daquele jeito perpetuamente fincado num céu dourado que nem Josué com seu deus poderá alterá-lo outra vez, tudo te anunciará um novo dia, um dia bom, num verão também novo, também bom, com a metade de dentro da vida se encontrando, sabe?, com a metade da vida de fora, num comércio preto no branco, numa nova relação, harmonias, numa confiança – até quem sabe numa fé – de que as coisas poderão por si mesmo se sustentar e seguir dentro dessa atmosfera assim toda nova, toda estranha, toda boa, segue cortando o mundo como um raio, uma linha limite, o dia tênue que separa uma estação da outra, vê, não repara o borrão, o mofo, a decrepitude que vai se tornando o mundo quando você ascende as alturas, tenta se erguer só contigo mesmo, com a tua confiança a não ser que os que vão ao teu lado não tentem te atrair pra fora do que tu está sendo neste momento, aprende a dormir com os olhos abertos sem que no sono eles percam o viço, o vigor, a força deste teu olhar que tu andas olhando de modo que nenhuma mão ouse se erguer contra ti e certifica-te, sempre, de não ter subido os montes tão alto na tua desvairada alto-estima e fome, desejo de alcançar os céus mais etéreos, que lá em cima o ar é rarefeito, há vulcões que não esperarão mais cem anos pra te queimar, deuses pra te torrar, gregos e romanos despudorados que não  hesitarão em fazer da tua graça alcançada um alto de Taigeto ou Tarpeia de onde te possam empurrar, e, como há muito se é sabido, o céu é imensamente pequeno, eis o motivo que leva os anjos a escorregarem sempre antes de todas as outras criaturas celestiais; e quando caíres – que tu hás de cair – as asas que te impediam de voar te farão falta, faltará contigo a tua fé pelo simples novo motivo de tê-la tido em demasia e quando te arrancares da queda o chão, a morte – que alguém disse em algum lugar que não a queda, mas a súbita parada é que mata – certifica-te de – como numa crença de amenizar os fatos – parar com a cara voltada para as estrelas como decretou Prometeu, que nenhum outro deus vai fazer de ti um jacinto, que a Luz Matutina é agora – e para sempre será –  escuridão e mal augúrio.



A. do Carvalho...

...em 12 de dezembro de 2011

Para Wasil Sacharuk, pelo incentivo à poesia e pela edificante amizade.

Retorno... (aos destroços de minha carne)

Carrego esta estada, este tesouro nas mãos com delicadeza que não é minha, não é própria, o medo me conduz feito os pólos que atraem a ponta das bússolas todas, e o chão que conduz a queda das maçãs, da areia na ampulheta, um medo de se fazer que se faça devagar todas as coisas que se faz nos limites de uma vida, um medo de entronizar aquele que o carrega, se lhe fazendo rezas: “devagar”, “atenção” me mantendo atento a evitar o possível susto, o provável espanto, a irremediável inquebrantável dor; caminho, corro, vôo, trajeto-me, faço-me luz ao ponto de mostrar-me somente em sombras, mas o que é meu é em mim, trago nos bolsos, nos orifícios todos, na epiderme, na cor dos ossos, no refluir do sangue o aviso prévio – quando todo salvo-conduto se rasga – de que inexoravelmente haverá susto, espanto & dor, e, irremediável, inexorável e incompreensivelmente o inquebrantável quebrará meu tesouro, a minha estada, então é quando dor afoga o peito, transpassa à lança a garganta, quando a cautela ainda sobrevive no pó, o pulso desafiando as leis físicas cai pra cima, de encontro à navalha que sem preâmbulos o lamberá; quando todo vômito acompanhado de seus urros guturais fazem o trajeto contrário garganta adentro enchendo núcleos e os estourando em milhões de estrelinhas podres, reduzindo-me ao universo só meu, de onde saí sem que saída houvesse e para onde retorno sem que frestas encontre, aos totais destroços da minha carne.


A. do Carvalho...
...em 29 de novembro de 2011

Linhas...