terça-feira, 11 de setembro de 2012

A peste



A peste
(entendimento latino-americano)


"O mundo, para mim, é o mundo, apenas:
um palco em que representamos,
todos nós, um papel, sendo o meu triste."
- W. SHAKESPEARE in "O mercador de Veneza", Ato I, Cena I


Feito a grande puta, batia o ponto e voltava para casa no fim da tarde, caía na cama e diria-se que todas as cortinas do mundo, cerradas pela sua mão de uma passada, abaixo e acima desse seu peso, contribuíam: era o fim do espetáculo, e repetia como num mantra - sabia o que era um mantra: é o fim do espetáculo, é o fim do espetáculo, é o fim do espetáculo erofindospetáculo... ...pois era um espetáculo aquilo, e um daqueles inesperáveis, intoleráveis, ali, no centro do mundo, no imenso palco mundano, a platéia cheia, o palco entupido de atores, e coisas, e roupas, e caracterizações e esboços de sentimentos total e - pra fixar, se é que algo ali pudesse se tornar mais fixo - inteiramente parados, fixos!, "inertes", ela pensava muito sem querer; nada acontecia; voltando do trabalho ela dormia, o despertador tocava e como a atriz da trágica peça que não terminava nunca, ela tinha de voltar à cena, era sua hora, ao papel da grande frustradíssima santa. Levantava, num outro dia com alguma energia nos braços, e, quando pensava isso seus lábios desgovernados, sua língua perdida e incalma, sua cabeça que não sabia de onde tirava essas coisas soltavam complementares: "E, no entanto, meus braços não me pertencem" e assim começava o dia, com essa frase que, sendo só uma frase não sentia a necessidade de vasculhar a memória pra saber quando começou a dizê-la assim tão apocalípticamente, não percebia que entregava a sua vida à selvageria dos dias citando um dos poetas de verdade que seu país teve um dia, um dos poetas que a enxergavam, um seu igual, e não percebia a poesia naquilo; sua vida era trabalhar e dormir para trabalhar - pouco depois do ponto da saída nada havia.

Não era de dançar, nem por aí nem dentro da casa sempre fechada que alugava pra dormir, não era de passar noite em claro, nem cantar cantava, não tinha tempo pra música, mas conservava - na face, no jeito de dirigir o olhar, de carregar a bolsa na mão, nos ombros derretidos e até - e apesar - no jeito elegante de caminhar fabricado por saltos altos, finos, agudos que conferiam uma onda ao quadril - uma expressão de mulher sambada. Diriam transeuntes, colegas de trajeto, ou um pedestre que a via no ônibus que passava, um de seus vizinhos varejistas, o caixa da lotérica em que fazia o depósito de seu aluguel, diria que era bonita, não fosse tão difícil: era uma dessas pessoas difíceis de olhar e entender a beleza, feito uma ideia da Ilustração, um quadro do Renascimento, ou de épocas e estilos em que a beleza da obra se constrói mais por quem olha do que por quem pinta, logo era preciso empreendimento, disposição por parte do expectador; ela tinha aqueles olhos de vidraça embaçada, tinha uns traços quebrados na cara, sofria do grande cansaço dava para ver; sua beleza pedia tempo e sacrifício do observador para se mostrar, era preciso interpretá-la, encontrar as conexões de seus traços e conectá-los, quebrar a moldura, aquela mulher era um desses difíceis poemas modernos somado às impossíveis composições poéticas de Heráclito de Éfeso, o Obscuro - e apesar disso sua profissão exigia beleza & graça.

Livros tentara ler alguns no ônibus a caminho do trabalho (no trajeto contrário era impossível...), certa vez encontrou no meio de umas tantas coisas perdidas um livro de contos provavelmente esquecido por um de seus breves namoros, pensou que fosse só um livrinho desses que qualquer garota pode ler, mas aquele era difícil, Morangos mofados de Caio F. não lhe fazia o menor sentido, desistiu, aquele tal Caio, aquele veado, falava umas coisas que por natureza ela não conseguia entender (fosse o oposto...) como quando em determinada história que tinha lá, determinado conto, um personagem e outro vinha sentindo assim que apesar do constante movimento próprio e do mundo, algo dentro deles continuava para sempre parado, adormecido, em torpor e aquilo soava a ela como se dito num dialeto indominável, que usa de antonímias para representar as coisas, pois que ela sentia exatamente o contrário, a vida era exatamente o oposto: tirava os olhos do livro e voltava ao ônibus, sentada imóvel ali no seu assento, pessoas em pé, escoradas, lá fora a cidade com suas árvores e edifícios e pontes e cachorros e cores como um borrão intermitente que aparece e some e reaparece um pouco mais atrás, sem movimento, fixidades - um desses retratos urbanos - e se fechava os olhos sentia uma luz muito ondulante no vácuo pouco dentro de suas pálpebras, uma luz que tremeluzia ali jogada de um lugar mais fundo dentro de si: apesar da inanição do mundo parecia sempre que uma biblioteca queimava dentro dela jogando luz e sombra no forro cavernoso de dentro do seu corpo, parecia sempre que um terremoto balançava a terra que corria dentro dela como se as muralhas de Tróia estivessem há milênios tombando, daí depois que abria os olhos sem perceber, sobressaltava-se pensando que ia queimar alguém, mas fora havia o mundo, havia o sol, havia a vida incessantemente cessada. Fria. Deixou o livro no banco do ônibus.

Não era muito inteligente, mas era vivida o que contribuiu para deixar muito intelectual no chinelo, mesmo que se mantivesse quase sempre só consigo mesma e quando ouvia algo que lhe desagradava passava a desfiar seus argumentos contrários para dentro de si, muda, introspectiva. Usava expressões frasais que, nunca ninguém lhe contando nunca viria a saber que citava grandes e renomados malditos: poetas, filósofos, dramaturgos, comunistas, santos, meretrizes de luxo e fazia assim sem saber e por não saber sem pretensões - não tinha pretensões, nunca teve -, com naturalidade, o que lhe "rendeu" mais de um amante entre aqueles  mesmos intelectuais (mas isso faz tempo, antes, quando do amor, antes de seus seios esfriarem e amolecerem para todo o sempre, quando aquele fogo de dentro ainda podia ser controlado, e modificado, direcionado até, quando seu corpo ainda entendia o comércio dos homens) que não duraram muito afinal. Trabalhava numa das mais bem sucedidas obras da arquitetura de sua cidade ("da América Latina!", diziam), ora, mas que contradição, acontece que, bem ali, à margem dessa pomposa construção, alguns - poucos - quarteirões do trabalho tinha de atravessar uma terrível (terrível não, triste) e asquerosa favela, daquelas tradicionais, casas de palafita, lama, verdes-musgos, fome, vício, cabelos desgrenhados, por sobre peitos esqueléticos as barrigas crescidas por todos os motivos da América Latina; todas essas coisas misturadas, criando um bolo, fermento incontido e ela, ela só olhava, aquela favela construída com crianças feias nos braços de outras crianças devassadas na calçada; passava no ônibus, olhava e acontecia o efeito retrato, em sépia, dessa gente que já morreu. A passada não durava mais que alguns segundos e era tempo dela adivinhar, nuvem invisível de átomos espalhados pelo ar, descolados do corpo daqueles meninos e meninas: o cheiro de sexo misturado com as dores da pedra. Sentia aquele barulho dentro de si e sem saber que palavras pensar apenas se mexia no banco, se empertigava um pouco enquanto abria espaço no meio do fogo de dentro para aquela compreensão muda que crescia dentro dela, uma compreensão desprovida de palavras. No trabalho, ouvisse comentários sobre questões semelhantes, não comentava os comentários, dizia simplesmente daquele mesmo jeito de antes: "A vida como ela é" sem olhar as colegas nos olhos, sem ouvir as senhoras que passavam comentando as vitrines, indefinível o que ela olhava ou via, o que se passava dentro daquele basculante embaçado, abandonado que eram as suas retinas, ali, estática, quase confundida entre os manequins sem cabeça, como prescreve a nova moda.

Segunda-feira, o único dia em que o despertador desperta só para cumprir com o ritual da semana, como um objeto que não pode deixar de voltar à cena da filmagem quando se tem de voltar à filmagem, à cena, depois das irrefreáveis dolorosas pausas: ela já estava acordada - dormiu o domingo inteiro -, mas sentia-se estranha, quando o aparelho tocou, embora já se encontrasse sentada na beira da cama fora arrancada violentamente de uma espécie de torpor, de um limiar, sentiu um vento fraco que não podia ter vindo de lugar nenhum, como se algo grande passasse muito perto, abanando, olhou para trás, depois prum lado e pro outro mas se algo havia a música do rádio-relógio levou embora. Naquele dia ela chegou cedo nas imediações do trabalho, desceu pelos lados da favela e andou um pouco; estava pensativa; seus olhos que geralmente passavam esfregando as coisas da vida nesse começo de dia nada refletiam, estava inquieta, não era de inquietar-se assim, príncipes troianos caiam, papiros queimavam no que ela caminhava e ela suplicava por alguma ordem e no que pensou assim, "ordem", aconteceu: acostumada com esses príncipes para sempre caindo, os rolos e rolos de palimpsestos inflamando eternamente, espantou-se quando perto da entrada do trabalho sentiu como que um corpo alcançando o chão - os corpos nunca o alcançavam, o fogo nunca cessava - passou os olhos e não encontrou nada, sentiu uma sombra, um sopro outra vez, aquela brisa, mas quando voltou parte do corpo e procurou só encontrou o sol ali, suspenso e maiúsculo, quente, ele era a negação de tudo o que sentira no repositório daquele instante. Encarou o dia lá fora alguns segundos e entrou tentando abandonar aquelas metáforas absurdas, outro achado, desta vez herança inconveniente deixada por um quase namorado estudante de História.

Era cedo, caminhava ali dentro, devagar, olhando o chão lustroso tendo sido limpo pelos meninos na madrugada, ia de uma galeria a outra, dobrando esquinas brilhantes, passando pelas intermináveis vitrines, começou a olhar sem que as coisas que via passassem a furtar-lhe os pensamentos, sentia aquele algo se aproximando, mas não podia saber o que era, não podia alcançar, nem medir, não compreendia, as vitrines ficavam para trás e não sumiam de sua frente, era um labirinto refletivo aquele lugar, os azulejos negros em nada ficavam a dever àqueles cristais, parada entre uma parede de pedras negras perfeitamente polida e um  imenso espelho que pendia suspenso por fios de náilon, entre vários manequins sentiu uma espécia de vestígio, os minutos corriam e era quase hora de entrar, na pedra preta perfeitamente polida podia ver os reflexos adentrando-se um ao outro, o espelho detrás dela balançava, conferindo movimentos falsos aos manequins - alguns com cabeça - frívola e perfeitamente bem vestidos, num repente, numa viagem a minutos irremediavelmente próximos sua mente se abriu com a porta central deixando ganhar os corredores toda a futilidade do mundo carregadas naqueles milhares de passos, aquelas pessoas, numa segunda-feira de manhã, ali, de novo, e todos os dias, sentiu um peso tremendo, e, como se se encontrasse a milhares de metros dentro do oceano sentiu uma pressão insuportável lhe empurrar para fora da presença daqueles que aguardavam lá fora, para a superfície. Abriu os olhos, foi rápido, ainda estava diante da parede preta, a pressão sumira, tudo que restara era um balouço fino de vaga marinha e o desejo que até isso se fosse, olhou aquele paredão ali muito perto, flutuante, é ébano?, o que vem lá dentro?, que coisa é?, pensou, rezou em silêncio e, contradizendo os dias, as horas, o comércio das mãos, naquele dia ela quis entender que mortíferas abstrações tomavam o seu espírito e depois de um esforço excruciante entendeu daquele mesmo jeito sem palavras, respirando uma coisa mais fundo e soltando o ar e se soltando à vaga; daquele nada uma imagem, uma lembrança antiga brotou como um soco no meio dos seus seios mortos, o historiador, o das metáforas falava lá daqueles dias afogados pela memória tão pouco requisitada dela "Veio numa embarcação genovesa" e naquele mesmo instante ela terminou de afogar a lembrança com água e sal verbalizando o inverbalizável: "Saída da Crimeia...". Ela andou alguns passos, as portas correram para o lado, opostas, saiu, enfiando a mão no bolso traseiro da calça, puxou um maço amassado de cigarros, levou até os lábios com os quais puxou um deles pelo filtro amarelo, com a outra mão apertou o botão do isqueiro, queimou a ponta do cigarro e começou a chorar convulsiva.

Aquele dia não trabalhou, refez o caminho, voltou para casa, repetiu o mantra e dormiu.
No outro dia chegou na hora, não olhou as vitrines, trabalhou muito porque - compreendeu, deste vez com palavras, que era esse o jeito acertado - graças a Deus Marx estava certo: o trabalho aliena o homem. E aquilo era bom.


A. do Carvalho...
...em 11 de setembro de 2012

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