sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Sozinha...

(ao som de Cala a boca, Bárbara – Chico Buarque)


E por vezes fumo cigarros quando os suspiros se tornam irremediáveis, quando o pulmão se aperta, a fumaça deixa meu corpo e encontra o vidro da porta, numa explosão se dissipa em formas reconhecíveis somente para mim, nessas horas geralmente há chuva, gotas do outro lado do vidrado que escorrem num rumo definido em direção ao chão, é então que apertando os olhos no meio do fumo que enche o vão, penso num dia bonito, quente de verão, com um calor nos corpos; sinto mesmo vontade de sair, mas como quem dá o primeiro passo em falso e cai num ridículo de quase cair diante de muitos olhos me retraio; é só que sinto muito medo, medo do que pode advir de meu caminhar por aí, medo de mudar as estrelas de sua devida posição em uma constelação, esbarrar ombros em outros ombros e seguir deixando vazios, dos cursos dos rios alterados porque eu coloquei o pé na rua, da cachoeira esquecer que rumo tomar; irracional?, acho que muito provavelmente talvez com certeza, mas eu sei que entendes, que palavras são só símbolos e os símbolos não são as coisas que supõe-se que são quando olhados, então isso é medo, isso é desorientação, é não saber a maneira correta de pisar o mundo ou só o chão, feito sair pra comprar salsichas e não saber como fazer o pedido ao taberneiro ou como estender o dinheiro, nós saberíamos se precisássemos de ovos, mas salsichas não, não é verdade? é ter a língua sempre dentro de um dialeto desconhecido, então fico aqui numa dor de não ter amor, numa dor de não ter remédio, numa certa compreensão já feita de que se houvesse amor ele não curaria, nem remédio remediaria e é quando meus olhos tocam o chão acompanhando as derradeiras gotas de chuva que deslizam pelo vidro, que me toca uma presença, feito viesse de longe e a partir de determinada distância os olhos entendessem as formas, eu entendo, nesse momento, que entendo de meus abismos e das coisas que sobem se batendo por seus corredores e num segundo dentro de um vestígio solto a ponta de cigarro e antes que ela toque o chão terei aberto a porta da rua, dado as costas a ela e entrado no quarto e me justificado: eu não posso sair, meu amor, sinto medo sei que tu vens, porque tu conheces os meus caminhos, meus meios, abro as portas pra você que sempre vens e talvez venhas porque sinto medo, de ver o sol, as nuvens que passam, mais me valeria que trezentos valentes entrassem pela minha porta e me flagrassem nua, mas eu sei que tu vens e meperdoe sete tuteio é só que não sei te tratar senão assim, eu não sei mentir só sei é de ter medos, dessas verdades que se cantam por aí em voz mansa de forma que se pareça mentira, “dizem que o mar vai virar sertão” e no fim eu não sei qual a mentira ou a verdade nas palavras, nas tonalidades, fico agastada e cansada, ora, pois ergue a pálpebra sobre os olhos do teu morto e mente pra si mesmo que tem luz neles, se podes, masnãotedesviesdemimmeubem tu me conheces e eu sou a única que te conhece, não te detenhas diante das tuas colunas, dos teus mármores, das cortinas, das tuas entradas, o templo é teu, meu imperador, tu conheces meus caminhos, as minhas entradas, te espero de braços abertos, adentra os prados que tu conhece tão completamente, toma na mão teus prados, sente o orvalho, o sabor e o aroma da noite, se vieres vou te fazer um laço a princípio, quando adentrares tuas colunas, quando sentires os toques dos teus deuses, em seguida te darei um nó tão apertado com meu corpo de modo que vamos nos fundir em uma única carne, e quando levantares para me deixar me deixarás carregando-me contigo, eu serei a marca intratável de ferrugem nos teus ferros, o teu ferro em brasa que virá pra marcar a tua escrava e não deixará essa minha carne sem levar nele minha própria marca, sem que se deteriore sem mim... pensarás que estou me abrindo para você, mas em verdade te estarei fechando em mim, na incineração total dos corpos, que queima, inflama tentando se ajustar a melhor posição sem parar nunca de arder, o beijo em transição, que encontra o seio de infinitas maneiras e não para nunca de procurar outras, melhores, enquanto meus óleos contribuem pra essa tua busca da perfeição sem avisar que essa perfeição, esse cume, ele está neste escorrego, nessa procura, nessa febre, nos nossos prados, celestes, queimando no fogo do diabo até que uma espécie de loucura aconteça, que sempre acontece, uma brancura na cabeça, uma claridão tomando conta do quarto quando enfim esquecemos o outro e nos voltamos somente pro nosso próprio prazer, nossos próprios rios, pressa contração feito metessem argamassa na gente, nos nossos meios, te aperto e sei que aquele nó encontrará sua completude neste momento, quando lá no meio das matas a mais escondida e mais frágil forma de vida se retrai e explode de alguma maneira oculta, nesse momento o laço se desfaz, voa uma borboleta em direção ao seu último instante, abro os olhos e me encontro num caos horrível, numa confusão que não se sabe onde se principia nem até onde se estende, e eu, sozinha, estendida completamente nua... murcha... os mármores tombados, os rios e as relvas secas e os seios como um céu de circo no chão, com todos seus sonhos e esperanças caídas no pó.

A. do Carvalho...
...em 26 de agosto de 2011

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