segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Inferno Asteca...


Então, quando Tlaloc mandou a chuva por entre os fios de sol e abri os olhos o que achei ser uma última vez numa cara exangue totalmente caída, vi os restos de meu corpo empapado fundidos a terra, indo embora junto a lama, os restos de carne que antes me compunha, meu sangue ganhando uma cor menos gritante saindo do carmesim muito vivo e entrando na terra marrom acinzentada molhada. E foi só quando olhei para meu ventre despedaçado, totalmente moído, que o gritante voltou a tocar nas coisas existentes e toda a gritaria, o caos, os ruídos dos cascos daqueles veados sem cornos daqueles supostos deuses, todo o barulho ensurdecedor que cresce dentro de nós ao ver que um deus se ergue diante de você contra você trazendo nas mãos aqueles fulminantes paus-de-trovão que hão de fazer um Mictlan, como um espanto, nascer e crescer no seu corpo onde ele acertar; toda essa zoada, como o mugido de uma hecatombe que se fizesse ali diante de seus tímpanos finalmente desprendeu-se do suspenso e caiu estrondeante no chão quebrando todo e qualquer conceito de uníssono. Pois eu percebia ali, olhando sob a magia do sol no meio da chuva aquele ventre massacrado de muitas cores: de um vermelho-arroxeado misturando-se ao marrom-escuro-esverdeado no meio de um preto podre sob o coração que deus algum comeria, já era certo e irremediável, eu percebia que o Mictlan, ou o seu inferno, oh español, queimava totalmente aberto à luz de Tonatiucan, o nosso paraíso asteca, e a chuva que caía nesse momento entre raios lânguidos de sol era a mesma adorada chuva, digna de rituais agradecidos. Eu percebia que os sacerdotes estavam errados, todos eles, ou fomos tolos demais para apreender durante toda uma existência que a treva do Mictlan, o nada do Mictlan, o inexistir dentro da existência do Mictlan é simplesmente escuridão escura. Eu podia, na morte, ver dois mundos se fundindo diante de meus olhos sobre a garganta em erupção levando embora o pouco que restava do meu sangue, dois mundos, e onde eu via no deusespañol, com sua carne ardente e brilhante como o fogo e o trovão nas mãos o equivalente (ou o próprio) ao nosso Tonatiu, se erguia agora, tenho certeza e gelo ao pensar que já no Mictlan e livremente, o nosso mais cultuado, o mais adorado e temido, deus da guerra, Huitzilopochtli, Huitzilopochtli e a deterioração que acompanha seu passo. Huitzilopochtli no Lugar onde tudo devia ser Nada. Eu não entendia, embora percebesse coisas outras, embora colocasse toda a minha consciência nesse olhar a ponto de sabê-lo o último, tudo em mim me dizia sem uma palavra, sem uma dor, sem um espasmo mais, sem um fremir que eu já estava morto e selado para sempre no meu destino; eu sentia com a minha consciência, a última parte de mim ainda viva, toda a promessa dos Antigos finalmente levando embora aquelas cores, aquele deus, tomado conta dos membros, o tronco todo, chegando à garganta, no coração que doía uma dor totalmente inefável por não ter subido ao altar e voado em glória à última morada de meus antepassados, indo parar na graça de um de nossos deuses cujos próprios corações já haviam sido tomados pelo homem branco do Mundo Antigo... e o meu não entender era um entender em demasia, embora meus membros e todo o corpo resto adentrasse passo a passo a antes tão temida e agora desejada escuridão de Mictlan, a minha consciência caminhava serena e visitava a moradia de cada homem da antiga e pequena Aztlán, do mais nobre ao mais pobre, à glória de Tenochtitlán. Eu caminhava no meio do que fomos e meu coração chorava ao recordar que esse caminhar era um caminhar a um só passo, a uma só tristeza, uma só morte. À extirpação de um só coração, o correr de um só sangue. À queda de nossas pirâmides, de nossos deuses, de nossas lógicas e até... de nossos infernos.

Homem nenhum, deveria morrer antes de seus deuses.







A. do Carvalho...


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