sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

A vida sempre assim...

Sair todos os dias e ver que tem sol mais uma vez, que sempre terá e com isso alimentar dentro de si um monstro que se tornará isso, a que chamamos irremediavelmente certeza, certeza que também crescerá e se tornará uma certeza absoluta, de que não iremos ou que só provavelmente iremos, dependendo da maneira de pensar, a Lugar Nenhum.



A. do Carvalho...

A vida sempre assim...


Ai, não seja a vida sempre assim...


Aqui, no fundo do quarto onde sempre estou, o azul do céu encontra um jeito de entrar e sentar nas coisas com uma suavidade ladina, como um lorde inglês sobre a cruz perfeita de suas pernas, prometendo novidade, como um amigo inconveniente, esse azul, que não se aparta nunca e se faz, o tempo inteiro, sentado ao nosso lado, na nossa cadeira, sem hora de sair. Jaz aqui mais uma vez a divina luz se erguendo em meus pés, pernas, coxas, pau, cintura, mãos, ventre, braços, cotovelos, dorso, peito, na minha cara, no meu cabelo. Tudo a iluminar. E, vejo no espelho sem realmente o ver, algo por detrás da máscara de minha quietude, algo além de meus lábios cerrados, algo em mim do tamanho dessa luz, como se sua sombra fosse, grita um grito louco, um grito insano de beata louca que arranca os cabelos, puxando-os com a brutalidade de quem deseja expor o cérebro como quem tira uma seda de sobre um bouquetde flores, um grito de Maria I nos corredores do Palácio de Queluz se forma dentro de mim, se ergue grande como um Polifemo desesperado de medo, e eu sinto o meu corpo quando este sente a última vibração de um tremor que se espalhou por ele e se extinguiu sem que o sentisse deveras.

Não pode ser a vida sempre assim...
Quantos são?, os que sentem o momento exato em que essa escuridão sem remédio atravessa o véu que é entre o que é dia e o que é noite, essa que nos vem, nem bem Aurora terminou seu labor trazendo de volta a mão para junto do corpo pro Carro Solar passar pela sua frincha, se recorremos a mitologias. Ou sendo mais verdadeiro, quantos são os que sentem essa força demoníaca, essa força satânica, essa Uma escuridão, que cresce do nosso lado, talvez à nossa direita e faz a Terra girar à sua volta, à procura da iluminação desse astro distante e estagnado do céu de todas as gentes?...

Essa Claridade infinda, essa chama imperecível que não para nunca, não para um só dia de cair sobre essas nossas cabeças cobertas de anátemas...

O simples ato de levantar na manhã de todos amanhãs e vê que é dia mais uma vez...
...tem sido desesperador, olhar o sol outra vez, o calor na carne, a vida que pulsa...

E que mais? E o que mais há?

Não seja a vida sempre só isso...
Não pode ser sempre só isso, Céus...
...um girassol desesperado fitando o sol do nascente ao poente...

Pedindo: "Vida!".



A. do Carvalho...
 

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Inferno Asteca...


Então, quando Tlaloc mandou a chuva por entre os fios de sol e abri os olhos o que achei ser uma última vez numa cara exangue totalmente caída, vi os restos de meu corpo empapado fundidos a terra, indo embora junto a lama, os restos de carne que antes me compunha, meu sangue ganhando uma cor menos gritante saindo do carmesim muito vivo e entrando na terra marrom acinzentada molhada. E foi só quando olhei para meu ventre despedaçado, totalmente moído, que o gritante voltou a tocar nas coisas existentes e toda a gritaria, o caos, os ruídos dos cascos daqueles veados sem cornos daqueles supostos deuses, todo o barulho ensurdecedor que cresce dentro de nós ao ver que um deus se ergue diante de você contra você trazendo nas mãos aqueles fulminantes paus-de-trovão que hão de fazer um Mictlan, como um espanto, nascer e crescer no seu corpo onde ele acertar; toda essa zoada, como o mugido de uma hecatombe que se fizesse ali diante de seus tímpanos finalmente desprendeu-se do suspenso e caiu estrondeante no chão quebrando todo e qualquer conceito de uníssono. Pois eu percebia ali, olhando sob a magia do sol no meio da chuva aquele ventre massacrado de muitas cores: de um vermelho-arroxeado misturando-se ao marrom-escuro-esverdeado no meio de um preto podre sob o coração que deus algum comeria, já era certo e irremediável, eu percebia que o Mictlan, ou o seu inferno, oh español, queimava totalmente aberto à luz de Tonatiucan, o nosso paraíso asteca, e a chuva que caía nesse momento entre raios lânguidos de sol era a mesma adorada chuva, digna de rituais agradecidos. Eu percebia que os sacerdotes estavam errados, todos eles, ou fomos tolos demais para apreender durante toda uma existência que a treva do Mictlan, o nada do Mictlan, o inexistir dentro da existência do Mictlan é simplesmente escuridão escura. Eu podia, na morte, ver dois mundos se fundindo diante de meus olhos sobre a garganta em erupção levando embora o pouco que restava do meu sangue, dois mundos, e onde eu via no deusespañol, com sua carne ardente e brilhante como o fogo e o trovão nas mãos o equivalente (ou o próprio) ao nosso Tonatiu, se erguia agora, tenho certeza e gelo ao pensar que já no Mictlan e livremente, o nosso mais cultuado, o mais adorado e temido, deus da guerra, Huitzilopochtli, Huitzilopochtli e a deterioração que acompanha seu passo. Huitzilopochtli no Lugar onde tudo devia ser Nada. Eu não entendia, embora percebesse coisas outras, embora colocasse toda a minha consciência nesse olhar a ponto de sabê-lo o último, tudo em mim me dizia sem uma palavra, sem uma dor, sem um espasmo mais, sem um fremir que eu já estava morto e selado para sempre no meu destino; eu sentia com a minha consciência, a última parte de mim ainda viva, toda a promessa dos Antigos finalmente levando embora aquelas cores, aquele deus, tomado conta dos membros, o tronco todo, chegando à garganta, no coração que doía uma dor totalmente inefável por não ter subido ao altar e voado em glória à última morada de meus antepassados, indo parar na graça de um de nossos deuses cujos próprios corações já haviam sido tomados pelo homem branco do Mundo Antigo... e o meu não entender era um entender em demasia, embora meus membros e todo o corpo resto adentrasse passo a passo a antes tão temida e agora desejada escuridão de Mictlan, a minha consciência caminhava serena e visitava a moradia de cada homem da antiga e pequena Aztlán, do mais nobre ao mais pobre, à glória de Tenochtitlán. Eu caminhava no meio do que fomos e meu coração chorava ao recordar que esse caminhar era um caminhar a um só passo, a uma só tristeza, uma só morte. À extirpação de um só coração, o correr de um só sangue. À queda de nossas pirâmides, de nossos deuses, de nossas lógicas e até... de nossos infernos.

Homem nenhum, deveria morrer antes de seus deuses.







A. do Carvalho...


terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

E se a vida fosse só aplausos?...

E se a vida fosse só aplausos?

Eu ia correr, deusdocéu!, como eu ia correr, com força espremer a ponta do cigarro recém aceso contra o cinzeiro e sair pela porta, me metendo até as bolas a essa vida que é assim só aplausos, dançar e dançar como um esquizofrênico epiléptico é o que eu faria agora naquele momento, com muita rapidez, muita rapidez que é porque a vida é só aplausos nesse momento e eu quero pegar ela toda e eu quero viver com gestos dentro desse momento pelo menos o dobro do que vivi nessoutra vida que vim vindo sendo até aqui, que não tinha nada de aplausos nela, mas nessa de agora que tá acontecendo aqui tem e eu vou sambar, vou frevar a sombrinha por debaixo das calças porque, deus!, é só alegria e eu quero sorrir, aqui, agora, hoje, nesse minuto, antes que acabe não tire de mim esse riso, essa dança, que essa é toda minha ilusão e minha vida; essa vida que é só assim, em aplausos.


A. do Carvalho

Linhas...