sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Longe...

Ao som de Longe, Arnaldo Antunes

Subo tranquilamente a escada entre o segundo e o terceiro andar e me dirijo ao terraço do terceiro. Quando apesar do céu sempre limpo, descoberto, em constante nudez dessa cidade se mostra para mim, noto, sem realmente ver, uma grande misturada nuvem se aproximando, feito um fumo de memória que me cobre por inteiro e entra todo nos meus olhos. Então acendo um cigarro e nele me apoio que é pra procurar sentir ao menos alguma coisa que precede a nitidez do gosto desse momento; que é pra ele, esse fumo que trago pros pulmões me segure ao menos em parte a esse momento presente. Que em parte, não ‘stou mais nele.

É por aqui ainda, que olho para os muitos - novos para mim - arranha-céus diante de mim: apartamentos, empresas, comércios, bibliotecas públicas, agências bancárias, as muitas catedrais estocando o céu; a arquitetura clássica conservada, em sua maioria no estilo barroco, prédios antigos, o bairro é Antigo. Lá em baixo se vê um pedacinho da Rua da Moeda cortando um vão entre mais prédios e, nesse pedaço de rua, a estátua colorida de Chico Science sobre a coluna também multicor, em sua inerte imortal pose de caranguejo, feito como se quisesse dizer algo que encontrou naquela pose; coisas essas de segredos. Por tudo isso e bem mais atravessa meu olhar e num resquício de memória, penso mitologias; penso que isso tudo que se faz é feito o olhar de Juno correndo pelo peso daquelas nuvens do dia em que Jove encantou-se com a bela filha do rio-deus Ínaco.

Tudo breve, não tenho muito tempo e compreendo agora que algo em mim está programado pra compreender, ali, naquele lugar entre momentos.

Ato contínuo, é quando o cigarro é só ponta que escuto os telefonemas na minha cabeça lá em baixo tocando de novo. E preciso voltar aos precisares do Brasil. Pois que todos os dias pessoas morrem, sofrem acidentes, ficam doentes, envelhecem e não morrem, morrem sem nem envelhecer, nascem deficientes, se invalidam e ficam à margem, mas ficam. Como o único copo da casa que não se pode jogar fora.

E, sem conseguir realmente ficar no momento presente, é só quando pego o telefone no Segundo que percebo de onde realmente voltei. Daquele lugar lá de dentro da gente, de onde saí a uma gestação atrás. Mas esse Onde, tenho certeza, jamais sairá de dentro de mim. Porque nas minhas terras tem palmeiras, onde nascem os sabiás. Por conseguinte, canções...

Em um segundo me desequilibro e noto breve, mas com tanta intensidade, onde estou, que até percebo meu próprio sorriso. E sinto pena dos velhos, dos deficientes, das mães, dos dependentes de mortos e de reclusos ao perceber que sou parte de uma Previdência.

Sinto vontade de outro cigarro, mas é proibido fumar.




A. do Carvalho...

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Sob o Nilo Estrelado...



No balançar cadenciado do silêncio da noite eu observo. Tem tédio, ou qualquer coisa inominável, aqui, que escorre do cérebro esquizofrênico pra carne e transforma a Coisa Essa, abstrata, em dor física.
E os astros no céu, eles eu não vejo sair do lugar, como se essa Dor Essa me pregasse ao mundo - com toda a abóbada estrelada -, com um imenso punhal que transpassasse a nós dois, logo o mundo e eu estamos pregados imóveis ao firmamento outrora impalpável.
De um pensamento, a matrona mente cansada pergunta ao escasso corpo se este não se cansa, mas os céus, ele é tão bonito que até dói olhar: Tá frio aqui fora, digo-me em voz alta a me abraçar, mas é melhor do que deitar e ter de pensar meus sonhos exilados, pois esses, nunca vêm. Quer isso?, me pergunta o corpo meu.
Cadê o Demônio Aquele? O Papão, a Coisa, que surge quando de nossa inconsciência e repouso e conta sonhos em nossos ouvidos? O que sou quando durmo se não me encontro em lugar algum?
Vejo agora seus serenos olhos frios a me fitar – seu rosto na lua.
Tudo muda, tudo voa... é até possível sentir um perfume balanceado no ar, e, totalmente perdido nos louros de teus cabelos, finalmente encontrar-me, além do véu, sonhando, caminhando por entre amarelos prados trigais, que surgem com o recolher do Nilo Estrelado.
Tem vida no Nilo meu.


A. do Carvalho
...em 29 de janeiro de 2010

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Entre a Cruz e o Crescente...

- Por que deveria poupar o que já conquistei e o que jurei destruir? - perguntou Saladino, Comandante dos Fiéis, Sultão de Damasco a Balian de Ibelin - Quando lhes ofereci misericórdia, vocês não aceitaram. Por que a pedem agora?

- Por esta razão, sultão. Diante de Deus, se tivermos que morrer, primeiro nós mataremos nossas mulheres e nossas crianças pequenas, não lhe deixando nem mulheres nem homens para escravizar. Queimaremos a cidade e tudo que nela está. Reduziremos a pó a Rocha sagrada, e faremos da mesquita de el-Aksa, e de outros lugares sagrados, um monte de ruínas. Cortaremos a garganta dos cinco mil seguidores do Profeta que estão em nosso poder, e então todo homem nosso que puder carregar uma arma sairá e irá enfrentar os seus, até cair. De modo que penso que Jerusalém vai lhe custar muito.

- H. RIDER HAGGARD, cruzada - no reino do paraíso


Estou caindo mais uma vez e uma vez mais como tantas outras, nunca sei em que cenário de quadro catastrófico vou dar.
Meus pés peregrinos carregam o que sou pra longe desse 'stou, e o lugar em que 's(t)ou agora se desenrola aos meus olhos.

No erguer dos olhos eu o vejo, um anjo na imagem muda entre a moldura tosca do espelho que pende torto. Segurando a pena como uma foice com a qual ceifa, somos Azrael.
Seu olhar de anjo que me fita pensativo, ele já sabe o quadro com o qual vai me envolver. E como um anjo caído, sangrando na terra, que por estar abaixo do Criador, entendo a Criação como Ele jamais entenderá: Isto aqui é a Guerra Santa, onde o santo não pisa mais; onde as terras regadas a sangue os olhos de Deus jamais caminharão. A guerra travada por demônios que lutam por
coisa qualquer; matando em nome da religião mas não por ela, é certo: pois há mulheres, lá, atrás das muralhas, que de tão infiéis, carregam a devassidão de demônios... Há crianças.

Ribomba ao céu um trovão metálico e eu vejo, à frente do luar de luz vermelha que tira a cor de meus olhos que sangram, o cruzar da cimitarra e da espada; coberto por vestes de ferro, o sarraceno e o franco empertigam-se um diante do outro. Há honra a cobrir seu adversário - se ele ao menos não fosse um infiel... subiria com honra aos Céus.

Que Satã tome conta de sua alma, infiel...
Que Alá tenha piedade de seu espírito infiel...

Entre homens desesperados, queimados pelo sol do Oriente, sedentos de sangue e de água - pois há muito sua garganta não é molhada -, entre homens que libertam almas para que Satã ou Deus recolha os seus, entre homens que recebem sorridentes, estocadas na garganta, vejo com outros moribundos, ao longe, duas silhuetas mudas que se erguem como Gigantes um à frente do outro, um Apolo de pés descalços; um turbante a rodear uma cabeça que se ergue sobre uma face quase que completamente queimada; eles choram, e nos olhos que choram, o sarraceno e o cruzado enxergam no olhar lânguido do Profeta de seu inimigo, a sagacidade de Satã, e de uma leve e curta desatenção de meus olhos causada pela lança que com a ponta derrama ao chão o que ao chão eles vieram dar, ergo novamente os olhos, mas eles se foram, e tudo que jáz é o leve e trovejante balouçar dos estandartes que lutam entre si: a Cruz e o Crescente; o Ocidente e o Oriente; a espada e a cimitarra que tendo sido levantada nesse mesmo dia distante - ainda que tendo sido e não sendo hoje, nesse Lugar Meu onde fui e vivi não arredando os pés do espaço vazio que não me contém - ainda não se abaixou.

E Azrael continua a empunhar a pena e a foice, a Cruz e o Crescente. E eu, eu vivo aqui, entre o espaço uivante da Queda, entre o Céu e a Terra, o Sermão e a Destruição.


A. do Carvalho
...em 26 de janeiro de 2010

Linhas...